O prazer quase sensual de contar histórias – Entrevista com Mia Couto

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Entrevista publicada no O Globo, caderno Prosa & Verso, pág. 6, em 30.06.2007

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O GLOBO: Em “Terra sonâmbula”, um dos personagens diz que “escrever é ensinar alguém a sonhar”. Para o senhor, o que significa ser escritor?

MIA COUTO: O verbo “estar” se aplica melhor e dever-se-ia dizer que alguém “está” escritor. Não é do domínio da essência, não é uma natureza em nós. O que está imperiosamente gravado em todos nós é a necessidade de criar, de inventar. Quero estar escritor na medida em que estou disponível para essa espécie de embriaguez que é a inspiração e o prazer quase sensual de criar histórias. Acreditei, num dado tempo, que o escritor tinha uma missão. Depois, desacreditei e olhei a escrita como se olha o amor, para além de qualquer serviço ou funcionalidade. Agora, sendo parte de um país que ressuscitou de uma guerra fratricida, creio, de novo, que o escritor pode ter um papel na reconciliação dos homens com o seu tempo. Em Moçambique, ninguém parece recordar-se desse período de horror tão recente (a guerra terminou em 1992). Vivemos dominados pelo medo de despertar demônios. A literatura pode ajudar a sarar essa ferida, pode ser um convite para revisitar esse tempo, sem medo da culpa e do ressentimento.

O GLOBO: Em vários livros seus, os velhos são guardiões da cultura popular pois trazem o registro dos costumes e do passado. Hoje cada vez mais se valoriza rupturas de valores e envelhecer é demérito. Como avalia o resgate das tradições e os ensinamentos dos antepassados?

COUTO: A idéia de que, em África, os velhos são sempre respeitados resulta de uma mistificação. Isso nem sempre sucede, mesmo em sociedades que não foram desarrumadas pela colonização. Subsiste na visão sobre a África ainda uma idéia cor-de-rosa, certa romantização do “bom selvagem”. Mas é verdade que, em certas sociedades — e muitas delas estão vivas em Moçambique — o lugar dos mais velhos é fonte de prestígio e saber. Não são todos os mais velhos. A idade deve ser cruzada com a linhagem, a família, o sexo (geralmente, a mulher é excluída desse pedestal). Essa tradição está sendo reconstruída pela atualidade. A modernidade africana convive de modo atribulado com isso que chamamos de tradição e está refabricando rituais e crenças. Mas isso sucede num universo em que a miséria absoluta vai corroendo aquilo que antes era dominado pelo respeito. Num mundo ajoelhado perante a mercadoria, sucede na África aquilo que sucedeu em outros continentes: velhos e crianças estão desvalorizados porque produzem pouco e compram ainda menos.

O GLOBO: O personagem Vinticinco de Junho, o Junhito, tem este nome porque nasceu no dia da independência de Moçambique. Para sobreviver aos horrores da guerra ele se transforma num galo, uma ave doméstica. Há algum sentido simbólico?

COUTO: Há simbolismos, no plural. No saber rural, de Moçambique, não é ficção aceitar-se que um homem se converte em bicho. O fluir de identidades entre pessoas, bichos e árvores faz parte do imaginário rural. E depois, há idéia de que a própria independência nacional se domesticou e ficou, como se diz metaforicamente no livro, aprisionada num galinheiro. Toda uma irreverência que existiu na luta de libertação nacional, todo um sentido épico e utópico, tudo isso foi desvanecendo.
O GLOBO: O sobrenatural e as assombrações circulam na sua obra. É uma forma de entrar num realismo mágico? No universo alegórico?

COUTO: O recurso ao “fantástico” não resulta de estratégia ou decisão pensada. Acontece no Brasil como em Moçambique, na América Latina como em África: a fronteira entre realidade e magia é uma outra e não obedece aos padrões da racionalidade européia. Aliás, quem deu nome e estudou essa corrente do “realismo mágico” não fomos nós, escritores, não fomos nós, do Terceiro Mundo.

O GLOBO: A África foi contaminada pela sombra do colonialismo, por anos de guerra civil e miséria. Sua literatura combate a retórica de “vítima” e propõe uma visão crítica. Como construir uma narrativa onde os africanos afirmem uma singularidade histórica?

COUTO: Essa afirmação está sendo feita a todos os níveis. A literatura é apenas um espaço onde se exerce essa proposta de inventar uma História em que nós, africanos, surgimos como sujeitos e parceiros do que aconteceu e deixamos de ser apenas vítimas e coitados. É importante assumir essa responsabilidade histórica, com base na verdade e na coragem de aceitar que uma parte de nós, africanos, fomos cúmplices das atrocidades cometidas no passado. A escravatura e o colonialismo foram praticados não apenas por mão de fora: houve conivência ativa de elites da África. Essa mesma conivência está prosseguindo hoje na dilapidação dos recursos em benefício das grandes companhias multinacionais. A visão vitimista só serve às atuais elites corruptas.

O GLOBO: O mundo atual está saturado de imagens e informações. Ainda há uma carência de narrar histórias e lançar luzes sobre a História através da literatura?

COUTO: Creio que a literatura é exatamente isso: levar a que a história case com a História. A apetência em escutar e contar histórias está dentro de nós. Eu seria uma pessoa pobre se não fosse capaz de produzir histórias, de fazer da minha própria vida uma narrativa que posso emendar, apagar e enfeitar. E eu não sou diferente de ninguém. Uma certa racionalidade nos fez envergonhar deste apetite, atirando a história para o domínio da infantilidade. Essa estigmatização da pequena história está presente na própria literatura: veja-se a forma como se secundariza o conto em relação ao romance. O advento e a hegemonia da escrita são também responsáveis por essa marginalização da oralidade.

O GLOBO: J.M.Coetzee e Nadine Gordimer são escritores sul-africanos que estarão na Flip, e têm estilos distintos do seu. É possível dimensionar a diversidade da literatura africana?

COUTO: Os dois escritores são já um exemplo dessa diversidade num único país. A escrita de Gordimer e Coetzee localizam-se em pólos e estilos absolutamente distintos. O continente africano está atravessado pela mesma diversidade cultural e artística de qualquer outro continente. Felizmente, está passando uma fase muito utilitária da literatura, como arma de afirmação política contra um tempo de negação. Era uma escrita datada, geralmente empobrecida pela obrigação assumida e fabricada pelos outros de ser “africana”. O texto literário era visto como uma espécie de prova de autenticidade étnica e racial. A feitiçaria, os velhos à volta da fogueira, as fábulas e lendas, tudo isso era receita obrigatória. Certa crítica literária européia ajuizava o valor desses textos como se estivesse perante um artesanato, como se tratasse de uma manifestação de folclore que os próprios africanos legitimavam. Hoje, uma grande parte dos escritores africanos libertou-se dessa pressão e quer apenas fazer literatura, debruçar-se sobre a luz e os abismos da alma humana, trabalhando temas intemporais e universais. 
 
Jornal: O GLOBO
Autor: Cristina Zarur 
Editoria: Prosa & Verso

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